segunda-feira, julho 03, 2006

O silêncio

Há uma linha muito ténue entre o dar tudo e o não dar nada. Há uns dias que me corrói uma ideia: até onde ir? O meu doente está a morrer. Dói-me cada célula quando digo isto. Digo isto muitas vezes por dia, baixinho. Como que a convencer-me da frieza da situação. Como que a mostrar a mim própria que a morte é tão natural como a vida. Mas não, a morte e o facto de não haver muito para fazer contra isso é algo que me que me afecta... um aperto que carrego mesmo quando já não estou no hospital.
Somos aquilo que a vida nos torna, aquilo que herdamos e a experiência que vivemos. Talvez se nunca tivesse perdido um familiar querido antes do tempo previsto, isto não me fizesse confusão. Não sei. Mas faz. Perdi a noção de até onde ir. Se por um lado sei que quando me envolvo com um doente me torno uma cuidadora melhor, sei que por outro não me devo envolver.
É a luta constante da empatia, da vocação e do sentimento contra a ética profissional, a frieza e o medo. Eu sabia que ia ser assim, e não é o primeiro doente que vai embora. Mas são perdas constantes. Se me envolvo, vivo em perda. Se não me envolvo, nunca ganho nada.
Ultimamente tenho-me lembrado das conversas com o meu colega Paulo que teve umas semanas numa unidade de cuidados paliativos. Já não sei se foi ele que me disse ou eu que o adaptei, mas ele dizia-me alguma coisa acerca do silêncio. O silêncio dos que sabem que vão. O silêncio que eles precisam. Esse silêncio que me dói. Tanto. Nem imagino como lhe doerá a ele. A mistura de revolta, de medo, de frustração, de desesperança. Um cocktail silencioso. O meu doente responde-me com palavras forçadas. Ou com silêncios.
Curiosamente é no silêncio que o entendo melhor. É ai que ele me diz mais coisas e é também em silêncio que eu entendo mais coisas. É em silêncio que engulo uma lágrima, enquanto escrevo o diário clinico dele, em que não se registam melhoras.

2 comentários:

Sebastião da Graça; Rodrigo Pais disse...

Bom conselho o anterior!
Sabes, ando neste momento a ler, nos intervalos do "O livro" (tu sabes!!), um livro que se chama "Médicos com emoções" de John Salinsky e Paul Sackin.

E tenho-me apercebido a atitude contra-natura que tentamos assumir perante os doentes. Tornamo-nos, estupidamente superiores, reprimimos as nossas emoções e encaramos os doentes, não como seres humanos, mas como aglomerado de orgãos com doença...

É esta postura, que tento combater todos os dias. No meu dia a dia, quando um dos nossos tutores (da "velha guarda") passa por um doente, e friamente lhe pergunta: "Ainda sente dores? Não devia, já está a tomar analgésico...", entre outras atitudes, fico sempre um pouco para trás, para dar um pouco que seja de conforto a quem sofre, a quem se vê "deslocado" da sua rotina, enfiado num ambiente estranho do Hospital. E a única recompensa que dou e recebo é um simples sorriso e um brilho nos olhos, e nesse momento sei, que a dor passou, mesmo que por pouco tempo.

As "dúvidas" e os conflitos interiores só significam que te estás a aperfeiçoar, enquanto humana, com os sentimentos a emergir no meio de uma medicina fria, mecanizada e desprovida de paixão. Já disse isto noutras ocasiões, mas volto a repetir. Irás ser sem dúvida uma grande Pediatra, que para além de uma grande técnica serás uma excelente ser humana, pois o que nos caracteriza enquanto tal são os nossos sentimentos!

Beijinhos

kanuthya disse...

Sou recém-chegada a estas paragens. tenho uma proposta de escrita para te fazer, busquei por aqui teu endereço email mas não encontrei. Se não quiseres qui deixar o endereço, podes enviar-mo para lotusviola@yahoo.com.br?
Obrigada :)