quinta-feira, fevereiro 23, 2006

Terramoto

Ainda era muito cedo. Cedo demais para o telemóvel tocar...
- “Shara, liga para a Sara porque houve um terramoto em Maputo”
- “Hmmm ok” – disse e pensei cá para mim “O Carnaval começou cedo”.
Tava quase a virar-me para o outro lado e voltar a dormir quando as palavras começaram a bater.
“Sara”.
“Terramoto”.
“Maputo”.
Caí da cama. Em stress. Pensei que tinha mesmo de ligar para a Sara. Agarrei no telemóvel que estava a ficar sem bateria. Levantei-me e fui, aos encontrões pela casa toda, tentar arranjar um carregador. Lá encontrei, liguei o telemóvel ao carregador e esperei o tempo mínimo para poder fazer a chamada.
Entretanto passavam-se mil coisas na minha cabeça.
“Será que a Sara está bem?”, “Um terramoto em Maputo?!?! Ninguém merece…”, “Será que vai ser preciso ajuda humanitária?”, “E a Mónica? A tia Nina?”…
Lá consegui falar com a Sara que me explicou que realmente o terramoto foi forte mas que estava tudo bem com ela. Respirei de alívio. Ela é uma daquelas amigas que queremos que esteja bem.
Entretanto lembrei-me que desde que voltei de Moçambique, há 5 meses, não me lembro de ter voltado a falar com ela. Embora me lembre muitas vezes dela com carinho, é sempre “amanhã ligo” ou “mais tarde mando um email”. Foi preciso pensar que havia uma desgraça.
Ainda nos rimos as duas com isso mas o assunto é sério.
Para além de mostrar uma ingratidão enorme.
A Sara recebeu-me super bem em Maputo, cedeu-me o quarto dela e aturou-me com um sorriso nos lábios durante dez dias (o que não é fácil). Enfim, não existem muitas pessoas assim. E embora já não nos víssemos há algum tempo (a minha cena com ela já é antiga, desde os tempos do Àgora, em que nos matávamos lá a estudar), ela continuava igualzinha. A Sara sempre foi das pessoas mais tranquilas e boa onda que conheci, com uma visão diferente do mundo e sempre admirei isso nela.
Se tivesse acontecido alguma coisa tenho a certeza que iria arrepender-me de não ter sido melhor amiga nestes últimos tempos. De não lhe mostrar que me lembro e gosto dela. Faz-me acreditar que só damos valor ás coisas quando temos uma visão de que elas nos podem ser retiradas.
Não é que o terramoto tenha acontecido só para me fazer lembrar que os amigos são para ser cherished mas há que aprender com as situações.
E eu aprendi que há prioridades e os amigos são uma delas.

quarta-feira, fevereiro 22, 2006

Hoje

E hoje era aquele dia que eu acordava mudada. Era uma pessoa mais tolerante, menos cansada e com mais vontade de viver. Era o dia em que acordava em paz com o mundo e acenava, a mim mesma, uma pequena bandeira branca. Era dia de tréguas, hoje.
Hoje era o dia em que eu te dizia o que sinto, sem aquela bola na garganta, sem atropelos de palavras e sem medo. Era hoje, aquele dia em que eu me dava um bocadinho mais sem exigir nada em troca.
Era hoje que eu me sentia bem comigo mesma, em que me aceitava e encontrava um objectivo.
O dia em que me tornava uma pessoa melhor. Era p’ra ser hoje.
Mas acordei tarde, com olheiras, com frio e três borbulhas na testa.
Achas que dá para ficar para amanhã?

terça-feira, fevereiro 21, 2006

Troca de papéis...

As crianças são o amanhã, são o futuro e são montes de outras coisas que nós, adultos, dizemos porque fica bem. Mas as crianças que são isso tudo são, no melhor dos casos, as nossas. Os nossos filhos, irmãos, sobrinhos, primos, filhos dos amigos… aqueles seres pequeninos por quem, por um motivo ou outro, nutrimos carinho. Ficam os outros. Não é minha intenção fazer, neste blog, uma homenagem (muito sentida, mas também já muito vista) ao famoso (e infelizmente muito frequente) “menino de rua”. Não que não ache que esses meninos e meninas não o mereçam. Antes pelo contrário. Queria era pôr-te a pensar. Fazer um pequeno exercício de “troca de papéis”.

Ponto 1.

Volta atrás. Lembra-te de como eras quando tinhas, digamos, oito anos. Lembra-te da tua cidade, da tua casa, dos seus cheiros e sabores. Lembra-te dos teus pais, tios, avós. Lembra-te das brincadeiras com os primos e os vizinhos. Lembra-te de tomar banho de chuva, de fazer tudo aquilo que os kotas não queriam que fizesses. Criança é mesmo assim! Lembra-te da tua escola, da professora, das “tarefas”. Lembra-te dos fins-de-semana, da praia.
Agora lembra-te dos medos que tinhas na altura. Da régua se não soubesses a tabuada, que te apanhassem a beber água da torneira… Podes até nem te lembrar disto mas quase de certeza que tinhas medo de perder os teus pais. Todas as crianças têm.
Agora imagina que todos os teus piores receios se tornavam realidade. Perdias os teus pais ou até toda a tua família. Aliás, assistias ás suas mortes. Vias a tua casa ser destruida por obuses e todos os teus brinquedos cheios de sangue de pessoas que amas. A tua escola também tinha sido destruída e a tua professora morta, juntamente com a maior parte dos teus amiguinhos. A água da torneira que antes não te deixavam beber era agora quase uma raridade. E nem sequer havia luz porque os postes tinham sido destruídos também… E tu que sempre tiveste medo do escuro… E nem sequer tinhas a tua mãe para te dar colo. Claro que tinhas fome, mas não havia comida. Aliás, não havia nada. Havia a roupa que tinhas no corpo e a destruição que tinhas na mente.

Se fores rapaz, lê a alínea a), se fores rapariga lê a b)

a) Como já sabes andar e ainda te restaram duas mãos, entregam-te uma arma. Não era bem o que tu querias mas é a única forma de teres alguma coisa para comer e alguma protecção. E também não tinhas outra escolha. A tua recruta é feita in vivo e a cores. Ou melhor, a cor. O vermelho do sangue. Logo tu que nunca foste de brincar ás guerras. Mas é mesmo assim, há que matar para não ser morto. É dura a vida. Por muitas vezes quase que morres e chegas mesmo a desejar que isso aconteça, no entanto sobrevives. Sabes e sentes que já não és o mesmo menino, que agora te acompanham o espectro de todos os corpos aos quais retiraste vida. Baixinho, rezas para que os deuses te perdoem e entendam que só fizeste o que tinhas de fazer. Um dia consegues fugir e chegar a um campo de refugiados. Tu, os “vícios” que adquiriste para conseguir sobreviver neste “mundo cão”, o teu sofrimento e os teus traumas. (Passa para o ponto 2)

b) Se fores menina não penses que a tua sorte é melhor. O mais provável é seres violada repetidamente. Se não morreres num desses episódios, vais-te arrastando. Tu e as outras crianças, mulheres e velhos que se arrastam, a si e ás suas poucas bikuatas, naquilo que se pode considerar a versão moderna do exodus. Como só tens oito anos não corres o risco de engravidar mas podes sempre contrair SIDA. Como não tens acesso a medicamentos (nem a comida sequer…), adoeces facilmente. Se adoeceres e não tiveres comida, enfraqueces e morres. Mas vamos lá ser bonzinhos e considerar que não contraíste SIDA nem morres de nenhuma outra doença, de fome ou de exaustão. Consegues assim chegar a um campo de refugiados. Tu, os “vícios” que adquiriste para conseguir sobreviver neste “mundo cão”, o teu sofrimento e os teus traumas. (Passa para o ponto 2)

Ponto 2.

No campo de refugiados até que se vive melhor mas inevitavelmente as dificuldades continuam, não há comida para todos, não há medicamentos para todos, não há espaço, não há condições básicas. Não há nada que dê para todos. Diz-se que há aviões e camiões a trazer comida mas tu não vês nada. A única coisa que vês é a fome. Pois, és muito jovem mas já aprendeste que a fome tem cara. Tem a tua cara e a cara dos que te rodeiam. Entretanto fizeste amigos, criança é mesmo assim, sociável por natureza. Os teus amigos são a única coisa que tens. São outras crianças que, órfãs como tu, decidem ir para a cidade onde têm família. Onde cabe um cabem dois. Sempre foi esse o espírito da nossa gente por isso partes com eles.

Ponto 3. Na cidade

Finalmente chegaste. Todas as esperanças ganhas ao longo da caminhada da tua (pequena) vida, rapidamente se desvanecem. A tua terra está longe no espaço e longe na memória. Sentes que foi tudo há tanto tempo e que aconteceu tanta coisa que já não sabes o que é verdade e o que é imaginação. Certamente que esta cidade grande não tem nada a ver com a tua pequena terra mas também, quem viu guerra vê tudo. Sentes-te um pequenino/a guerreiro/a. Alguns conseguiram encontrar família mas tu continuas sozinho. Sozinho não, com os outros meninos “refugiados de guerra”. Dentro da vossa vaga noção de organização social lá se vão desemaranhando e criam grupos relativamente bem organizados. Não há comida pois não? Não… E o que é que tu, que me lês, fazias se tivesses fome, muita fome, dez anos, nenhuma educação, poucos valores, muita revolta, tristeza e alguma maldade? Roubavas, não é? Tu talvez sim…

Mas não, o meu “menino de rua”, o meu “refugiado” não rouba. Ainda é uma criança e apesar de lhe terem arrancado a inocência característica, tudo o que viu e ainda o fez ter ódio, ainda tem uma noção, ainda que parca, do bem e do mal. Então decide ir pedir esmola. No fundo sente que a sociedade tem obrigação de o “compensar” e de ser, em parte, responsável por ele/a.
A sociedade, no entanto, não acha nada disso. Nós, ainda que insconscientemente, achamos que “esse bando de marginais não são maka nossa, que o governo masé que devia olhar por eles ou então mandá-los prós kimbos deles, onde é que já se viu uma pessoa nem poder andar na rua sem ter esses aí a chatear ah porque meu kota dá só pão, ah porque minha tia dá só dinheiro”.

Agora fecha os olhos. Pensa na criança que mais gostas. Pode ser o teu filho, o teu irmão ou uma outra criança qualquer. Imagina o dia a dia dela. Imagina o seu dia comum. Imagina-a sem pai, sem mãe. Imagina-a sem família, sem casa, sem terra, sem rumo… Imagina esse pequenino que sempre foi guiado a ver-se de um momento para o outro, sem guia… E cercado de ódio, de medo, de terror. Imagina o teu pequenino sem comida e sem água, só com fome. É duro imaginar né? E se as nossas crianças que são educadas com valores, com o mínimo indispensável, sem tantas privações… se muitas das nossas crianças se tormam adultos maus, sem escrúpulos, agressivos… Que é de esperar destes meninos e meninas que vão ser daqui a 10 ou 15 anos os adultos angolanos? Que é de esperar deste país?

Não quero ser propagandista, dizer coisas muito bonitas mas sem resultados práticos… O que eu queria mesmo era que as crianças tivessem tanta importância em Angola como tem o petróleo, os diamantes, as fortunas que se acumulam… não porque são pequeninos e “tudo o que é pequenino é bonito”. Nem porque cai bem dizer isto… Apenas porque o futuro de Angola não é só o petróleo e os diamantes, o futuro de Angola também são as crianças. Assim, na próxima vez que uma criança te pedir alguma coisa, não digas logo “não tenho nada”, pensa nisto e lembra-te que tens sempre alguma coisa, nem que seja um bocadinho de ti. Entendo que perpetuar a “esmola” pode também perpetuar o recurso à mesma, tornando-se num ciclo vicioso. Mas, já que não há muitas alternativas a isto, acho que por enquanto é nosso dever. Até encontrar alternativas. Aliás, se tiveres alternativas, aceito sugestões para mudar qualquer coisinha… Talvez sozinha não consiga fazer muito mas se nos juntarmos talvez as coisas sejam diferentes. Mais uma vez, o importante não é mudar o mundo, é mudar um bocadinho dele.